julho 31, 2017

vaso, novo

*imagem poderá ter
direitos de autor


não sabes, se calhar nunca saberás. 
fui um pedaço de barro nas tuas mãos. 
deixei-te moldar, deixei-te criar um ser. 
só teu, seria só teu.
fizeste de mim uma nova peça, inacabada.
eu a tua melhor criação, quase perfeitos.
mal senti as tuas mãos.
deixaste-me cair, partir, morrer em mil bocados.
não me viste, não me percebeste.
ainda varro o chão,
apanho-me em pequenos pedaços,
uns quantos por dia.
eu que só queria ser amado como o barro nas mãos do oleiro.*

... como barro nas mãos do oleiro. 
[Jeremias 18, 1-6]
na parábola o vaso que se desfez,
foi refeito,
e nós um dia?
afinal, não sabes,
mas a poucas foi
dado tamanho
privilégio.


julho 27, 2017

sátira


Sempre gostei sátira / crítica social com base em desenhos. Não é tão fácil como parece, desenhar, e dizer tanto com uma só imagem, sem palavras.

Deixo aqui duas boas sugestões:

A exposição da World Press Cartoon, no Centro Cultural e de Congressos de Caldas da Rainha, com entrada gratuita. Estão lá os melhores.

Em segundo um autor pop culture, também muito interessante, o Saint Hoax. Abaixo alguns trabalhos, sendo que podem ver em www.sainthoax.com



World Press Cartoon
no CCC de Caldas da Rainha

Hollyweed
©Saint Hoax

The sound of Capitalism
©Saint Hoax

Selfish
©Saint Hoax




julho 25, 2017

crueldade


crueldade,
ter de escolher,
entre as ondas negras do teu cabelo,
onde tanto gosto de correr,
e as ondas brancas do meu mar
logo eu, mau na arte de mais-querer

eis a tempestade perfeita


pormenor da xilogravura
A Grande Onda de Kanagawa,
do mestre Hokusai




julho 18, 2017

o meu melhor lençol


é no silêncio,
que só a noite dá,
que recordo o meu melhor lençol de seda.
era a tua pele em repouso
sobre o meu peito.
a tua pele e o meu silêncio,
que só a noite me dá.

a tua pele o meu melhor lençol.


© Albert Watson

julho 15, 2017

palavras


© Jack Vettriano


As palavras são tudo. Tu já foste tudo, e hoje são as palavras tudo o que tenho para te dar. Dei tudo e até as minhas palavras te dei.

As palavras são difíceis de eternizar, as minhas já as vi voar sobre um dourado campo de trigo, baixinho e em surdina, leves, livres como as promessas em palavras ao teu ouvido.

As palavras aquecem-me no Verão e arrefecem-me no Inverno, mas é no Outono que mais gosto de as desenhar, e na Primavera de ler as palavras de outros equinócios.

As palavras deviam brotar em mim, do coração até à ponta dos dedos, as do cérebro morrem novas, sozinhas. O meu coração devia ser a minha máquina de escrever, e a tua pele o meu papel. A esta hora dizes que eras papel químico, que usei na pele de outra. É mentira! As mulheres são todas diferentes, merecem palavras diferentes. Não chores, se tens as minhas palavras, tens tudo o que tenho para dar, pouco e pobre, mas é tudo.

Quem é dona dos restos do meu coração, é dona das parcas palavras que desajeitadas de lá saem até às ponta dos dedos.

As minhas melhores palavras, não foram ditas nem escritas, iam agarradas naquele beijo, aquele em que te disse tudo sem nada escrever...

bésame mucho
por Cesária Évora



julho 13, 2017

ócio

Two for Tango,
by Fabián Pérez ©

Enquanto o mundo dorme a sesta, pego no Evangelho segundo Jesus Cristo, do José Saramago, na toalha, cigarrilhas e Ray Ban, encho o peito de ar, e permito-me uma tarde de ócio vazio na piscina.

O ambiente está calmo, algo geriátrico em russo, e recheado de quarentas, alguma selectividade, alguns livros, poucas crianças e um fantástico azul no céu e no reflexo do tanque de banhos.

Não me sai da cabeça, "eu quero ser amado como o barro nas mãos do oleiro".

Falava a Isabel Pires de tatuagens, muito mais em moda que em anos passados, e também eu constato que não tenho opinião na matéria. E parece-me que assim vai continuar, afinal o ócio é isso mesmo.

O ócio tende à parvoíce, e reparo no ritual libidinoso das senhoras que saem da piscina e apertam os peitos para escorrer a água do biquíni.

A vizinha da cama ao lado aparenta um estado metafísico agarrada a um livro. Há qualquer coisa de neurótico na senhora, nova ainda, e com medo de ser notada, está enterrada na leitura. Não consigo ver que livro é, apenas o nome do autor em letras garrafais - Eckhart Tolle. Pensei, talvez seja um autor novo que desconheço, e faço o uso do telemóvel para saber quem é o senhor. Desilusão, é um autor de livros sobre iluminação espiritual... O que bem visto enquadra-se no quadro geral da senhora vizinha.

Volto ao Evangelho, livro do qual estou a gostar porque sendo eu pessoa de fé, acho muito bom a visão de quem não a tem.

Mas isto requer concentração, que o ócio não me dá. Volto a espreitar mais um espremer de biquíni... dou a tarde como perdida.

Pai, anda lá a água está boa, vamos fazer umas bombas? O ambiente da piscina não pede miúdos a fazerem mergulhos barulhentos, e se calhar, era mesmo isso que estava a faltar. As crianças, verdadeiros génios no que ao quebrar do ócio dizem respeito. Vamos a isso!

Ao sair de uma bomba fenomenal que atingiu os geriátricos russos, ouço o tipo do piano tocar algo que me animou. Tango pois claro, o que deixa antever uma boa seroada.

por una cabeza,
de Carlos Gardel



julho 12, 2017

conto de princesa

yesterday's dreams
by Jack Vettriano

Quando te conheci falavas francês, espanhol e inglês, tocavas piano, e ouvias jazz. Tinhas uma educação aristocrática, etiqueta, e uma elegância notável.
Quando te conheci eras plebeia, vivias feliz no meio do povo. Mas sempre com um pé nos castelos de reis e princesas.
Escolheste este jovem para o teu conto de fadas de princesa que se apaixona pelo rapaz do povo, e quer levá-lo para viverem felizes para sempre.
Mas isto são contos, e os contos são, na maioria das vezes, e por maioria de razão, de difícil concretização além de bonitas capas e reforçadas lombadas.

[anos depois]

Anos depois já tinhas lido todos os clássicos, Saramago é que não, era comunista. Anos depois eras uma mulher princesa, amarrada num castelo com bebés, e com um príncipe tirano. Mas estavas mais elegante que nunca. Não resistimos a tentar, mais uma vez, a fazer do conto vida real...

Queria dizer-te que sempre gostei dessa tua educação, elegância e glamour.

Plebeus na sua vidinha, e aristocracia na sua vida, e as histórias de encantar ficam nos livros.

Claro que não disfarço, afinal ainda ontem me dizias que não há duas sem três.

julho 09, 2017

falta tudo, portanto

peacock chair



Comprei um piano de cauda. Não que o saiba tocar. Nem desejo, de lhe tirar um fá ou um si. Tenho a vista de um décimo andar, que me leva longe, e que tem o mais brilhante espelhar da lua cheia na água. 
Falta a cadeira, para ver mar e o piano. 
Faltas tu a tocar sob o brilho da lua no mar.
Falta tudo, portanto.



©Chick Corea
solo piano portraits