junho 16, 2017

psycho killer (parte 2)

© Kelly Reemtsen

Duarte acendeu o isqueiro. O anjo aproximou-se e acendeu o cigarro. Confirmou que a voz de anjo conduzia mesmo a um anjo. Cabelo negro, brilhante, pouco abaixo do ombro, olhos verdes, lábios de contornos perfeitos. Um rosto que no seu todo emitia uma aura, como é expectável num ser divino. Vestido preto, pouco acima do joelho, e costas desnudadas de pele brilhante, parecendo seda.

- por favor, sirva-me outro, e outra bebida para a senhora.

O intuito era claro, perceber se de facto estava na presença de uma mulher, um anjo, ou era uma visão fruto do álcool.

- a senhora tem nome?
- Sara. Mas o nome não faz a pessoa. É o inverso, a pessoa é que faz o nome. Ou seja, é o que o faz que conta.
- pois é... Eu sou Duarte, e o que faço está à vista.
- não se martirize, conheço o género. O meu pai morreu dessa morte lenta.

Ficou aquele silêncio audível, cómico até, de duas pessoas que querem falar mas não sabem o que dizer, partilhado com sorrisos.

- sabes...
- não diga nada. Eu sou tola, e acabo sempre por me apaixonar por quem... enfim, por quem já tem problemas que chegue.

Duarte estava sem palavras. Um anjo apaixonar-se por ele? Afinal Deus existia, era o sinal. Tamanha beleza não precisava de palavras, não queria saber nada dela, só ama-la em seus braços.

- desculpe, isto é repentino. É um disparate, mas acho sempre que posso salvar pessoas, talvez por não ter salvo o meu pai.
- confesso que nem sei o que dizer...
- não diga nada, vamos começar do principio, por favor!

Neste mesmo instante, dois homens de gabardine creme aproximaram-se. Um deles algemou Sara. Num gesto repentino Duarte levantou-se, mas logo sentiu a mão do segundo homem a empurra-lo de forma ligeira para o banco.

- fique sentado, tenha calma.
- mas afinal que palhaçada é esta! - gritou Duarte
- Já lhe explico, acalme-se. Antunes leva-a para o carro.

Sara olhou para trás, para Duarte, e sorriu. Mandou-lhe um beijo.

- faz o favor de me dizer quem é, e o que é que se passa aqui?
- acabei de lhe salvar a vida...
- o Sr. é louco, e vai ter que se explicar.
- acalme-se se faz favor. Sou o Inspector I., trabalho na Polícia. Esta senhora é uma psicopata, e assassina. Estamos em crer que matou 6 homens, todos alcoólicos.
- matou? Como?
- seduzia-os. Levava-os para sua casa, drogava-os, e depois ainda com vida cortava-os aos bocados. É como lhe digo, acabei de lhe salvar a vida.

Duarte olhou para o barman, e fez sinal.

- mais um, puro, por favor.
- ouça o álcool vai matá-lo. Hoje salvei-lhe a vida, mas do álcool preciso da sua ajuda, preciso da sua vontade de viver.
- Inspector, estou cansado desse discurso moral. E afinal o que lhe interessa a minha vida?

Neste instante o Inspector já tinha virado costas. Mas Duarte ainda ouviu as suas palavras:

- Ainda há pouco pedias a Deus por sinais. Não consigo dar-te sinal maior.

Fim.



psycho killer
by
Talking Heads


bom seria que o Impontual escrevesse o epílogo desta pequena brincadeira.

talvez o whiskey fosse ordinário, e o Duarte alucinou. Mas mais cego é o que não quer ver, ou teve mais sorte que juízo, ou voçês é que sabem...

e se Deus existisse assim mesmo?













22 comentários:

  1. se calhar, não merecia a sorte de uma morte piedosa...

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    1. Isso depende de ti (autor), como é que ele chegou ali?

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    2. Os caminhos que conduzem a uma dependência são vários, os mais comuns a morte de um ente querido, um passado de violência, um amor perdido...
      Deixo ao teu critério um passado que implique uma morte não piedosa :)

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  2. Cada vez mais dou comigo a concordar com o adágio “não existem coincidências” ;)

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    1. Em cheio!
      Não acredito de todo em coincidências :) e essa é sem dúvida um dos motores desta pequena história.

      Abraço

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  3. Há sinais que chegam de forma imperceptível... E o Universo é um sítio estranho!

    :)

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    1. Isso mesmo!
      Eu acredito que muitos sinais passam à nossa frente e nós não vemos.
      :)

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  4. Só nós nos podemos salvar de nós próprios
    :)

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    1. Também acredito nisso.

      Mas todos precisam de ajuda que às vezes não conseguem ver!

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. Todos nós precisamos de ajuda. Conseguir aceita-la, reconhece-la faz parte da minha resposta inicial. Só nos ajudam se nós os deixarmos. ;)

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    4. Vamos ver se agora o texto vai todo :)
      Todos nós precisamos de ajuda. Saber aceita-la, reconhece-la é parte da salvação que está em nós. Não se ajuda quem não sabe ou não quer ser ajudado...

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  5. A bebida seguinte seria não para esquecer mas para celebrar a sorte. E isto de haver sempre uma razão para mais um copo não resolve o problema. :)

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    1. Ahahaha pois é, sempre uma boa desculpa para mais um copo!

      Mas acho que este aprendeu a lição :)

      ou não...

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  6. Muito bom.
    Ainda não tinha chegado a hora de Duarte. :)

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  7. Ver os sinais não basta tem de se levar com eles para a cabeça abaixo estou em crer... ;))) só aí se clareia a visão.
    Muito bom, Miguel

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  8. Ah, meu caro Bondurant, isto está tão bem contado! E agora como é que descalço esta bota? Com os acontecimentos dos últimos dias o que dava mesmo era emborcar uma dose tripla de whisky e esquecer. Mas vamos a ver de arranja um epilogo razoável para a mais que bem contada história do Duarte.

    Um abraço.

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    1. Ilustre, que alegria vir a ver o epílogo desta pequena história lá no seu espaço.
      Estou em crer que o Duarte até é bom rapaz, mas não cabe nesta história contá-lo.

      Obrigado, abraço

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