Gastão de Brito e Silva,
acordei devagar. a lentidão era movida pela desconfiança. havia um cheiro que me lembrava as velhas drogarias. o lençol áspero, ocre, lavado, mas gasto. a colcha em amontoado aos pés, usada do tempo, em branco gasto. a cama tinha umas grades laterais, recentemente pintadas, de branco, mas sem esconder as falhas do metal corroído. o tecto, branco, de cantos amarelos do tempo. rodei a cabeça para a direita e logo vi um pequeno armário em metal branco. o quê, quem, me pôs ali. a cabeça dói, e o branco gasto contribuí para alienação. vejo homens deitados em camas velhas, os gemidos não param. tenho umas calças brancas. quem me vestiu. nasce em mim uma dor no peito. dobro-me em posição fetal, faço força para evitar as lágrimas. estou sozinho. abandonado. porquê. só há branco gasto, gemidos, um cheiro químico. quero chorar. apetece-me gritar. pressinto a chegada de alguém. uma mulher de branco imaculado, uma touca, um tabuleiro. fico com medo, não consigo articular palavra.
- o menino vai tirar sangue. depois mostro-lhe o chuveiro.
- onde está a minha mãe - balbuciei.
...
hospital santa maria.
desde então cultivo um medo de espaços onde predomina o branco. detesto, sinto pavor de hospitais e similares, e de batas brancas fujo. hoje estou bem melhor, e já vejo melhor a serenidade do branco.
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, de Fernando Pessoa
[1923]
Os espaços brancos não me perturbam, antes pelo contrário até me acalmam, mas nunca consegui dormir numa cama que esteja toda branca, tem que ter sempre um ponto de cor e nunca percebi porquê!
ResponderEliminar:)
Hoje menos, mas durante muito tempo, espaços demasiado brancos remetiam sempre para hospitais e sanatórios...
EliminarHoje está melhor :)
Há experiências que nos marcam para sempre. Essa associou-se ao branco de forma negativa. Mas como em tudo, o tempo faz as coisas desvanecerem (o que se pensarmos no branco, é capaz de ser uma ideia um tanto estranha).
ResponderEliminarE é estranho! Mas aquele excesso de branco do hospital marcou-me, se calhar pela tenra idade :)
Eliminarreconheço os cheiros, Miguel.
ResponderEliminarainda hoje!
EliminarHá memórias que nos gastam as cores, a memória das cores é que às vezes parece que não se gasta.
ResponderEliminarOlá Vi :)
Eliminar"Há memórias que nos gastam as cores..."
Vou guardar :)
Grande beijo
Por vezes passamos tantos anos a tentar conseguir lidar com aquilo que as memórias deixam em nós...
ResponderEliminar:)
Faz parte do viver, ou não?
Eliminar:)
Absolutamente. Faz de nós quem somos!
EliminarAfinal, não é aquilo por que passamos que diz quem nós somos, mas como encaramos aquilo por que passamos!
:)
Isso mesmo!
EliminarSomos um saco cheio de coisas e situações :)
Abraço